terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Predestinação na Escolástica Tardia

Para os crentes protestantes, a ideia da predestinação aparece deslocada de seu contexto filosófico e histórico. Parece que ela surgiu ex nihilo na mente de Lutero e Calvino, como se tivesse saltado sozinha das cartas de Paulo e pousado na mente dos reformadores. Já entre católicos, é como se o mundo medieval nunca houvesse escutado nada igual, e estivesse boquiaberto perante tão “horrível” e “surpreendente” doutrina quando da pena de Lutero ela saiu, contra Erasmo.

John Duns Scotus (1265-1308) havia distinguido entre a vontade absoluta de Deus, ou seu poder absoluto, e os meios contingenciais (ou ordenados) por meio dos quais ele executa sua vontade. Essa distinção é fundamental na teologia. Sobre Scotus diz Steven Ozment (Age of Reform, 34):

“[to Scotus] The former was primary and crucial. Necessary divine relations existed only within the Godhead, there, in eternity, where Father, Son, and Holy Spirit, taking counsel with themselves, decided to create and save a portion of mankind. In eternity God had determined within himself everything that would be, including who would and would not be saved; having so determined, he then, freely and wisely, but also secondarily, elected angels and agents to execute is will in time […] The choice of particular means to execute the divine will had nothing to do with any intrinsic value they possessed, and their importance continued to lie only in their having being chosen by God”

A discussão subjacente é: se Deus é limitado pelo caráter da própria realidade, ou se ela é contingencial, objeto apenas da vontade particular e inescrutável de Deus. A realidade é necessária ou contingencial? Quanto mais necessária é a realidade, mais inteligível ela é (daí a acusação – questionável – de racionalismo em Aquino). Quanto mais contingencial, mais oriunda da vontade ininteligível de Deus ela é. Quanto mais necessária, mais amarrada na estrutura da realidade é a agência de Deus, e mais semelhante a Ele o homem (dotado de razão, a qual ele compartilha com Deus) se torna. Quanto mais contingencial, mais afastado e incompreensível Ele é.

Os Dez Mandamentos são necessários ou contingenciais? São objetos da vontade arbitrária de Deus, ou estão amarrados na própria estrutura da realidade? Em outras palavras: Deus poderia ter escolhido outros mandamentos, ou só esses?

Para Aquino, a forma substancial do homem é razão, e a graça infundida nele é acidental. Mas Deus salva pela graça, então, da onde ela vem? Pedro Lombardo (ele deve ter aberto o caminho do voluntarismo), disse que a graça não era um aspecto acidental do homem, mas a própria presença do Espírito Santo nele. Aquino nega isso, e diz: a graça é realmente pertencente ao homem, acidentalmente (não define sua essência), mas infundida nele, ou seja, as atitudes oriundas dela são verdadeiramente atos voluntários de posse do homem. Deus, então, torna-se “obrigado” a salvar onde há essa graça, pois essa é a própria estrutura da realidade. Ademais, a graça de Deus poderia ser mediada pelos sacramentos, pois ela estava presente verdadeiramente neles. Assim, o homem poderia adquirir os hábitos da graça pela participação nos sacramentos. Os sacramentos operariam uma mudança ontológica no recipiente, mesmo se acidental.

A ideia de Scotus é preservar a liberdade de Deus – somente Ele é necessário em si mesmo, sua relação trinitária é necessária, mas não sua ação na história – e ressaltar seu caráter de Criador, majestoso. Por que isso foi necessário? Pois o realismo tomista havia “amarrado” a vontade de Deus à própria estrutura da realidade, totalmente inteligível na Escala do Ser (Chain of Beign) e da graça sacramental (isso é o que diz Ozment).

O axioma de Scotus é: "Nada criado deve, por razões intrínsecas a ele, ser aceito por Deus". Guilherme de Ockham em seguida, postula: "O que quer que Deus possa produzir por meio de causas secundárias, ele pode diretamente produzir e preservar sem elas" (daí surgiram as famosas colocações de Ockham de que Jesus poderia ter se encarnado num burro ou numa pedra).

Por outro lado, a formulação de predestinação mais parecida com a dos reformadores vem de Gregório de Rhimini.

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