terça-feira, 31 de março de 2015

Fiorismo, utopia e a contingência da realidade

Um dos pais da crença de que é possível realizar uma utopia na terra é o abade cisterciense Joaquim de Fiore (1132 - 1202).

Sua visão de história é uma panaceia trinitária para os males do mundo. Ele acredita que a Trindade se manifesta historicamente, em três eras de 42 gerações cada. A evolução secular da história, a história da redenção e a natureza trinitária de Deus eram, para Fiore, uma coisa só, um mesmo processo. Como cada Era é um período histórico, elas possuem instituições e cultura própria, além de uma tipologia, precursores e visionários. Fiore historicizou a Trindade, assim como Hegel, séculos depois, historicizaria o Espírito.

A primeira dessas Eras, a ordo conjugatorum, é a Era do Pai, que se estende de Adão até o nascimento de Cristo.  A Era do Pai foi o tempo do patriarcalismo e da lei. A Era do Filho, estendendo-se do nascimento deste ao século XIII, perpassa o período da Igreja cristã até a época de Fiore, e foi o tempo do clericarismo, a ordo clericorum, da autoridade fragmentada (Lei, Rei, Papa, Feudos, monges etc) e do início da graça.

A era do Espírito Santo, segundo o abade, deveria começar por volta de sua própria época (coincidência?), ao redor do ano 1250. É a ordo monachorum. Esse seria o período da graça superabundante, quando os valores monásticos se espalhariam por toda a sociedade. Seria um tempo em que o amor reinaria supremamente, tudo haveria de ser comunitário e compartilhado. A autoridade seria dissolvida no igualitarismo de comunidades compostas não por lordes e servos, mas por amigos, que se veriam como iguais. Assim, a manifestação histórica da Trindade se daria como uma lenta evolução, um progresso gradual de realização do reino espiritual de Deus na terra.

Há muita coisa interessante sobre Joaquim de Fiori relatadas no livro de Steven Ozment. O mais interessante de tudo, entretanto, está nisso aqui (pg 107):

"By such reasoning Joachim's prophecy of a new age sanctioned innovation against tradition and implied that authority need not be based on precedent. More so than Ockhamist philosophy, Joachim's profecy stressed to contemporaries the contingency of the world as presently known. It did this, however, not by pointing to an infinite number of possibilities open to God in eternity, but by directing poeple to a new, superior form of life still in the future. For Joachim, each age bore its own peculiar divine authorization. As the past had its unique standards and practices, so too would be the future. As the standards of the Age of the of the Father ("an eye for an eye, a tooth for a tooth") gave way to those of the Age of the Son ("turn the other cheek"), so must those of the Age of the Son give way to those of the dawning age - the egalitarian, communal life of mutual love." (grifo meu)

Em todos meus colegas idealistas, progressistas ou revolucionários, percebo exatamente esse traço: a contingência da realidade presente. O peso dos séculos é descartável, como é a mão que se troca no começo infeliz de um jogo de cartas. A experiência humana coletiva, acumulada ao longo de gerações incontáveis, e imortalizada em símbolos tradicionais, na alta cultura e na solidez de instituições milenares - como a própria Igreja e o direito - é vista não como uma fundamentação imperiosa para ações futuras, mas como um tiro, uma tentativa, um chute que pode não ter dado tão certo e que precisa de novo rumo. Os homens antigos não pesam. O caminho percorrido pela humanidade para que o mundo tenha chegado até aqui não se impõe autoritativamente, e a experiência humana é transmutada num jogo de acerto e erro. É como se o mundo se tornasse plástico, maleável, acidental. Há na mentalidade do progresso um desprendimento do peso da realidade - e não à toa uma das imagens mais evocantes do utopismo é o homem que imagina uma cidade ideal flutuante.


Parece que isso foi trabalhado por Eric Voegelin como uma perturbação do espírito (gnosticismo). Não conheço a descrição exatamente. Mas a relação vista aqui entre o nominalismo e o pensamento utópico deve ser uma sacada memorável para o estudo das teorias de progresso e da mentalidade revolucionária.


quinta-feira, 5 de março de 2015

P.O. Kristeller sobre o historiador e o Renascimento

O parágrafo final do artigo Humanism and Scholasticism in the Italian Renaissance de Paul Oskar Kristeller (publicado em "Renaissance Thought", 1961) é memorável. É mais "quente", claro, para quem o encontra no final da leitura completa do artigo; mas, como toca em aspectos importantes do ofício do historiador, vale a pena registrá-lo mesmo assim.

“Modern scholarship has been far too much influenced by all kinds of prejudices, against the use of Latin, against scholasticism, against the medieval church, and also by the unwarranted effort to read later developments, such as the German Reformation, or French Libertinism, or nineteenth-century liberalism or nationalism, back into the Renaissance. The only way to understand the Renaissance is a direct and, possibly, and objective study of the original sources. We have no real no real justification to take sides in the controversies of the Renaissance, and to play humanism against scholasticism, or scholasticism against humanism, or modern science against both of them. Instead of trying to reduce everything to one or two issues, which is the privilege and curse of political controversy, we should try to develop a kind of historical pluralism. It is easy to praise everything in the past which happens to resemble certain favorite ideas of our own time, or to ridicule and minimize everything that disagrees with them. This method is neither fair nor helpful for an adequate understanding of the past. It is equally easy to indulge in a sort of worship of success, and to dismiss defeated and refuted ideas with a shrugging of the shoulders, but just as in political history, this method does justice neither to the vanquished nor the victors. Instead of blaming each century for not having anticipated the achievements of the next, intellectual history must patiently register the errors of the past as well as its truths. Complete objectivity may be impossible to achieve, but it should remain the permanent aim and standard of the historian as well as of the philosopher and scientists.”

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Universais de Tillich...

O que é o nominalismo? Em Filosofia, é a negação da existência de universais. Um universal é uma entidade metafísica que garante às coisas suas respectivas essências, ou qualidades de Ser. Eles podem existir num além-mundo, idealmente, como em Platão, ou podem existir dentro de cada particular, como em Aristóteles. O que importa é que nessas duas filosofias (chamadas realistas) os universais possuem existência ontológica. 

Pensando assim, quando você vê uma cadeira com o pé quebrado, você ainda a chama “cadeira” – mesmo sem o pé – pois reconhece que ela ainda é uma cadeira, ou compartilha a qualidade de “Ser” cadeira. Isso não é uma opinião subjetiva sua (“ah, eu chamo de cadeira porque eu ainda consigo sentar, se não conseguisse...”) mas uma realidade ontológica. Ela compartilha essa qualidade “cadeira” com todas as outras.

Universalia realia. Os universais são realidades, para os medievais. Essas essências metafísicas são potenciais de Ser, e determinam o que as coisas são. Paul Tillich explica: eles não existem no tempo e no espaço. Se fosse assim, isso seria baboseira. Você diria: “ah, eu nunca vi ‘humanidade’, só pessoas individuais, o Bruno e o Pedro. Nunca vi nem toquei na ‘cadeiridade’ ou na ‘arvorirade’, só vi cadeiras e árvores individuais, particulares”. É óbvio que você nunca viu nem tocou num universal. (Tillich, 143) Mas assim como o Bruno e o Pedro e todos os homens têm nariz e boca, o universal é o poder que torna possível todo indivíduo se desenvolver assim. Para que isso seja real, estrutural, garantido, ele precisa existir ontologicamente.

Para o nominalista, os nomes que damos às coisas são meras conveniências, e chamamos “cadeira” vários objetos diferentes porque por acaso eles compartilham semelhanças que interessam a nós no momento. Se nos preocupássemos com outras coisas, daríamos outro nome. Não haveria nada real que os uniria metafisicamente. Seriam apenas particulares, soltos, desconexos.

Paul Tillich dá um exemplo bacaníssimo. Você pode ver uma árvore na esquina da Rua Itacolimi com a Rua Alagoas e dizer “putz, isso pode cair e me machucar”. Você pode ver uma árvore na janela de casa e pensar “Hmmm, essa árvore fica linda aí.”. Você está no terreno dos particulares aqui. Ou você pode ver uma árvore qualquer, e se deslumbrar de como ela cresce segundo uma estrutura típica, como ela espalha suas sementes em certa época do ano, como ela agrega outras plantas em seu tronco, e se fortalece, e transmite vida, e você diz “isso é uma árvore”. Isso é uma posição realista, que procura a essência das coisas.

Not so Fast

Normalmente o nominalismo está para Filosofia assim como a peste negra está para a História. Mas não parece que é necessário pensar assim. Há quem buscou requalificar o pensamento nominalista medieval (cf. Heiko Oberman, historiador luterano) e torna-lo mais palatável.

... a Mário.

Mário Ferreira dos Santos (126, 127) lança um exemplo para explicar os universais e particulares, e adiciona algumas outras escolas intermediárias.

Nesse debate, é possível ser nominalista, conceptualista, realista moderado e realista exagerado. 

O exemplo dado é um do carro Volkswagen. O nome é dado para apontar automóveis de marca Volkswagen. Temos, então, em primeiro lugar, um nome que almeja significação universal. Ele pretende designar um grupo de automóveis. Chame isso de estágio A.

Agora, os automóveis Volkswagen possuem características em comum, que se repetem em todos os seus carros, correto? Pense nas normas técnicas, na mecânica, etc. Então, o termo Volkswagen capta esse conjunto de características presentes em todos os carros Volkswagen (Mário diz "com-capta", capta junto). São qualidades comuns que, na nossa mente (isso é importante) não se pode prescindir, elas definem um Volkswagen. Tudo isso que foi "com-captado", resulta no "cum-ceptum", o conceito. Agora há um conceito universal Volkswagen. Estágio B.

Mas pera aí. Esse conceito tem algum fundamento real? Essas qualidades imprescindíveis de um Volkswagen existem na realidade, definem de verdade o carro, ou isso é uma opção subjetiva que fizemos na nossa mente? Posso dizer que sim, existem mesmo. Posso dizer que esse mínimo denominador comum de elementos é verdadeiramente o que define um Volkswagen, não porque eu quero, mas porque a realidade é essa mesmo, e se você acha que um Gol não é um Volkswagen porque ele é duro e marrento, você está errado, pois ele compartilha verdadeiramente os elementos reais de um Volkswagen, a despeito de ser meio esquisitinho. Estágio C. Cada carro Volkswagen possui em si mesmo os elementos universais que os definem.

Há ainda um último estágio, que (você matou a charada) é o exagerado. Esse conceito universal pode existir além das coisas, além da mente humana, idealmente. Estágio D.

O nominalista afirma apenas o estágio A, o conceptualista o B, o realista moderado, além dessas duas, afirma o C, e o realista exagerado afirma o D.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Uma implicação de necessidade e contingência


Provavelmente, o debate sobre necessidade e contingência exposto no post abaixo tem implicações para as discussões sobre Teodiceia (um termo dado por Leibniz), ou como Deus pode permitir a existência do mal. Seria o mal necessário à própria estrutura da realidade, ou uma opção voluntária de Deus de permitir que ele exista, almejando o melhor dos mundos possíveis, ou até apenas um dos mundos possíveis que satisfez sua vontade contingencialmente?

Séculos antes Anselmo buscou provar racionalmente, sem o auxílio da revelação divina, que a incarnação é uma necessidade para a salvação do homem (Cur Deus homo, porque Deus se tornou homem). Consegue-se isso (bem mais ou menos) com um argumento semelhante ao de Leibniz: propondo-se que só há uma maneira de fazer as coisas da melhor forma possível, que é como Deus fez. Assim, se essa foi a forma escolhida por um Deus justo e bom, essa é a única forma válida. É a melhor possível.

William Courtenay (Ozment, 50) diz que Anselmo se afasta do nominalismo, pois não lhe agrada divisões sobre potentia absoluta e ordinata. De fato, se Anselmo pressupõe que a maneira escolhida por Deus é a melhor possível porque escolhida por Ele, não parece haver espaço para outras. É como se a natureza de Deus determinasse suas escolhas.




Predestinação na Escolástica Tardia

Para os crentes protestantes, a ideia da predestinação aparece deslocada de seu contexto filosófico e histórico. Parece que ela surgiu ex nihilo na mente de Lutero e Calvino, como se tivesse saltado sozinha das cartas de Paulo e pousado na mente dos reformadores. Já entre católicos, é como se o mundo medieval nunca houvesse escutado nada igual, e estivesse boquiaberto perante tão “horrível” e “surpreendente” doutrina quando da pena de Lutero ela saiu, contra Erasmo.

John Duns Scotus (1265-1308) havia distinguido entre a vontade absoluta de Deus, ou seu poder absoluto, e os meios contingenciais (ou ordenados) por meio dos quais ele executa sua vontade. Essa distinção é fundamental na teologia. Sobre Scotus diz Steven Ozment (Age of Reform, 34):

“[to Scotus] The former was primary and crucial. Necessary divine relations existed only within the Godhead, there, in eternity, where Father, Son, and Holy Spirit, taking counsel with themselves, decided to create and save a portion of mankind. In eternity God had determined within himself everything that would be, including who would and would not be saved; having so determined, he then, freely and wisely, but also secondarily, elected angels and agents to execute is will in time […] The choice of particular means to execute the divine will had nothing to do with any intrinsic value they possessed, and their importance continued to lie only in their having being chosen by God”

A discussão subjacente é: se Deus é limitado pelo caráter da própria realidade, ou se ela é contingencial, objeto apenas da vontade particular e inescrutável de Deus. A realidade é necessária ou contingencial? Quanto mais necessária é a realidade, mais inteligível ela é (daí a acusação – questionável – de racionalismo em Aquino). Quanto mais contingencial, mais oriunda da vontade ininteligível de Deus ela é. Quanto mais necessária, mais amarrada na estrutura da realidade é a agência de Deus, e mais semelhante a Ele o homem (dotado de razão, a qual ele compartilha com Deus) se torna. Quanto mais contingencial, mais afastado e incompreensível Ele é.

Os Dez Mandamentos são necessários ou contingenciais? São objetos da vontade arbitrária de Deus, ou estão amarrados na própria estrutura da realidade? Em outras palavras: Deus poderia ter escolhido outros mandamentos, ou só esses?

Para Aquino, a forma substancial do homem é razão, e a graça infundida nele é acidental. Mas Deus salva pela graça, então, da onde ela vem? Pedro Lombardo (ele deve ter aberto o caminho do voluntarismo), disse que a graça não era um aspecto acidental do homem, mas a própria presença do Espírito Santo nele. Aquino nega isso, e diz: a graça é realmente pertencente ao homem, acidentalmente (não define sua essência), mas infundida nele, ou seja, as atitudes oriundas dela são verdadeiramente atos voluntários de posse do homem. Deus, então, torna-se “obrigado” a salvar onde há essa graça, pois essa é a própria estrutura da realidade. Ademais, a graça de Deus poderia ser mediada pelos sacramentos, pois ela estava presente verdadeiramente neles. Assim, o homem poderia adquirir os hábitos da graça pela participação nos sacramentos. Os sacramentos operariam uma mudança ontológica no recipiente, mesmo se acidental.

A ideia de Scotus é preservar a liberdade de Deus – somente Ele é necessário em si mesmo, sua relação trinitária é necessária, mas não sua ação na história – e ressaltar seu caráter de Criador, majestoso. Por que isso foi necessário? Pois o realismo tomista havia “amarrado” a vontade de Deus à própria estrutura da realidade, totalmente inteligível na Escala do Ser (Chain of Beign) e da graça sacramental (isso é o que diz Ozment).

O axioma de Scotus é: "Nada criado deve, por razões intrínsecas a ele, ser aceito por Deus". Guilherme de Ockham em seguida, postula: "O que quer que Deus possa produzir por meio de causas secundárias, ele pode diretamente produzir e preservar sem elas" (daí surgiram as famosas colocações de Ockham de que Jesus poderia ter se encarnado num burro ou numa pedra).

Por outro lado, a formulação de predestinação mais parecida com a dos reformadores vem de Gregório de Rhimini.