Discussão minha com meu amigo Pedro sobre questões pertinentes ao protestantismo, com o perigo do gnosticismo, o evangelicalismo e a questão da tradição:
Pedro: Cara, leia isso aqui depois. Ore antes. Se quiser podemos conversar a respeito depois, dá muito pano pra manga. http://www.chnetwork.org/story/a-protestant-historian-discovers-the-catholic-church-conversion-story-of-a-david-anders-ph-d/
Bruno: Hmmm... de fato. Há várias coisas aí bacanas para discutir. Quando eu cambaleei de lado [católico], foi por causa de argumentos como esses aí (tirando o dos pais da igreja). É claro que não conheço o cara pessoalmente, mas dificilmente alguém se converte ao catolicismo por causa dos pais da Igreja - há incontáveis estudos apontando para todos os lados - e tirando, é claro, o movimento mais comum: caras se convertendo para a Igreja Ortodoxa!
Vamos conversar pessoalmente, sim, é legal. Agora, eu li muitas histórias de conversões nos últimos anos, e poucas mencionam o que realmente me fez ficar balançado: a questão do "gnosticismo protestante". Felizmente, eu hoje conclui que o gnosticismo protestante é um perigo real, mas - pelo menos, segundo o que vejo até agora - não faz parte da essência do protestantismo. É só uma confusão, embora muito comum.
Eu "sanei" o medo do gnosticismo protestante estudando os sacramentos, por isso que, aquele dia em que conversamos sobre isso com meu tio Marcos eu bati tanto nessa tecla da Ceia do Senhor, e nós apresentamos uns argumentos para você sobre isso, puxando a ideia de comunicação real de graça espiritual na ministração.
Os "gnósticos" protestantes veem a Ceia apenas como uma afirmação pública de fé, e um momento de "memória" da verdade do evangelho. Ou seja, o sacramento é restrito ao aspecto cognitivo, mental. Na realidade, toda a religião do "gnosticismo protestante" é restrita ao âmbito cognitivo e mental, e é por isso que é racionalista, e, no limite, mata a crença num mundo espiritual verdadeiro.
Foi pensando nisso que eu também adotei uma posição muito mais aberta aos pentecostais e ao evangelicalismo (eu sempre disse isso e você sabe, que o evangelicalismo é a forma moderna da igreja protestante, nunca neguei, mesmo reconhecendo os problemas e perigos). Eu defendo muito dentro da IPB que a nossa igreja deve ser de confissão reformada e prática evangélica. Essa simbiose é a única maneira de garantir a saúde da Igreja e afastar o perigo do gnosticismo.
Há figurões dentro da IPB que defendem, por exemplo, que não se deve colocar uma cruz de madeira no templo, pois ela leva a "distração" do fiel e o faz crer na salvação por um objeto. Isso é gnosticismo puro, meu Deus! Para esse pessoal, a religião não pode assumir nenhuma forma material, nenhuma prática, nenhum símbolo, se não ela se contamina. É por isso que, para eles, a Ceia do Senhor é um mero ato de cognição, e se de alguma forma a realidade espiritual se torna associada ao material, ela está "suja".
Eu os chamo de "pessoal do culto racional". O argumento usado por essa turma é sempre "nosso culto é um culto racional..." e aí vai. São os caras que defendem igrejas sem aparência, sem forma, completamente práticas. Não os incomoda se o culto se transformar numa conferência de hotel, a pregração se transformar em aula, a Igreja se transformar num bloco de concreto modernista. A forma não tem significado nenhum para eles – tudo deve servir à compreensão cognitiva da mensagem.
Não se incomodam, por exemplo, da Ceia não usar vinho.
É esse tipo de visão que faz o protestante ficar do jeito que o cara falou no artigo autobibliográfico: argumentativo, orgulhoso e confiante. Tudo se transforma em teologia, tudo é dogma, afirmação sistemática. Conforme eu sentia isso, eu me senti muito tentado com o catolicismo (também por causa das leituras do conservadorismo, que é muito romântico, e eu me sensibiliza com a estética católica que eu encontrava na vida dos meus avós, por exemplo)
Mas eu tomei consciência de que isso, que me deixava meio bolado, não é protestantismo. É um perigo do protestantismo, é dele se tornar racionalista, mas não é necessário. A força do protestantismo é justamente a espiritualidade - mas ela não pode morrer.
Como você deve sentir no ar, depois de tudo o que escrevi, tudo isso tem a ver com meu interesse em arquitetura, urbanismo, arte, beleza, etc. Eu acredito que as ideias podem assumir formas, e que nós, seres humanos, somos feitos para nos relacionar (especialmente nossas almas) com formas também. Eu acredito que você pode materializar formalmente a ideia de aconchego, por exemplo (casa do Hobbit). Por isso, eu digo que isso é objetivo, e não subjetivo. O modernismo mata o aconchego, mas as casas do hobbit os preservam. Não é apenas uma opção subjetiva.
Para esses caras do "culto racional", os hinos, por exemplo, servem apenas em sua função de ensinar as verdades do evangelho de uma forma alternativa à pregação. Mais uma vez, é apenas cognitivo.
Esse é um dos motivos pelos quais os hinos não conseguem fazer frente ao avanço dos cânticos bregas. Ninguém consegue explorar bem a estética dos hinos.
Pedro: Cara, seus comentários foram na mosca, muito bons mesmo. Só alguém que ligou com isso pode ter essa clareza. E eu acho que é bem por aí. Desde aquela nossa conversa eu comecei, pela primeira vez, a estudar e entender o que é a tradição reformada. E minha prática diária na igreja tem sido vazia, porque ela é profundamente racionalista. Mas ainda assim, o que mais me pega hoje é a questão da tradição. Como a gente liga com a reforma, que foi em partes um movimento revolucionário? Deflagrou guerras, instabilidade, etc. E eu acredito que a leitura dos reformadores é bastante seletiva dos padres da igreja, não acho que podemos dizer que os padres eram proto-protestantes.
Bruno: Eu me identifico com você nessa questão da prática racionalista. Cara, eu tenho uma resposta vaga para isso, eu não sei dizer exatamente. Eu encontrei uma resposta conservadora e romântica, rs... Como não poderia deixar de ser.
Eu acho que essa retórica reformada de "recuperação do verdadeiro evangelho dos primeiros séculos" é bobagem. Quem dizia isso era justamente os grupos revolucionários, que deram nas seitas, isso fica muito claro no livro “Theology in America”. A Reforma corrigiu erros católicos, mas ela era, claramente, uma etapa nova da religião cristã. Eu acho que a religião cristã evolui em etapas. Não é possível resgatar os pais da Igreja, na realidade, quando você vai lê-los (eu nunca os li, apenas li quem leu), você vê de tudo, misticismo, platonismo, filosofias gregas, maior bagunça.
Eu acho que, falando da perspectiva humana, não existe um "evangelho puro" que seja possível descobrir, e limpá-lo das amarras do tempo, da cultura, do local histórico em que isso se dá. É por isso que eu sou positivo na minha leitura do evangelicalismo.
O evangelicalismo carrega em si mesmo uma profunda ironia: eu lembro de argumentar com você que o perigo dele é o individualismo, o fiel que se pensa autossuficiente, e capaz de arbitrar todo os pontos da fé segundo seu próprio crivo crítico. Mas é justamente porque o evangelicalismo é a forma moderna da religião protestante que ele tem esse perigo – é por causa da modernidade ser individualista. É um perigo inevitável, portanto.
Não é possível simplesmente adotar uma confissão retrógrada, dizer que estamos "vivendo como viviam os reformadores de Westminster", e achar que estamos livres do individualismo porque o individualismo não era um problema na época deles. O individualismo sempre estará conosco. É possível mitigá-lo, e daí a importância da confessionalidade, mas ele sempre estará presente. É essa a ironia: o evangelicalismo é necessário, com suas sinas e com suas sacadas.
Eu acho que a Igreja cristã é um todo orgânico. Não acho que seja possível a teologia se "livrar das influências do pensamento em que ela vive". Isso é uma ambição racionalista. É por isso que os grandes teólogos são sempre meio modernosos, tipo o Karl Barth. Esses caras percebem isso, que uma teologia verdadeira é sempre bagunçada com o tempo em que ela vive. Ela tem perguntas que precisam ser respondidas, e essas perguntas são perguntas da nossa cultura, do espírito da nossa época.
Eu pareço meio liberal-alemão-luterano-existencialista dizendo isso, e eu nunca formulei exatamente o que isso significa, mas é isso que eu percebo por intuição.
Tem muitas perguntas que eu não sei responder, sabe? Mas eu acho que a posição mais saudável e prudente é ser menos belicoso e seguro, e mais aberto, ou mais irênico, mais católico, o que termo que estiver na moda para falar dessa posição protestante que seja mais aberta à história e às outras vertentes cristãs.
Uma coisa que me parece óbvia: muitas das nossas práticas religiosas estão em simbiose com a cultura (isso não é ruim). Por causa disso, não da para baixar da teologia uma série de regras e dogmas sobre coisas práticas. Isso é uma armadilha. Eu não estou falando de relativismo, mas é verdadeiro - isso está mais claro para mim - que várias coisas são bem mais relativas do que eu pensava antes, quando a gente se converteu e estávamos cheios do John Piper e da apologética reformada.
Curiosamente, somente um cara arrogante e orgulhoso (como eu sou) não poderia se dar conta disso. Veja, qualquer um é capaz de saber isso, estava sempre debaixo do nariz. É só você ir em uma igreja bem evangélica, descobrir um "senhorzinho" que trabalha como porteiro de prédio, e ver que ele é mais piedoso e fiel que muitos apologetas de facebook. Resta simplesmente levar essa verdade às suas últimas consequências, só isso. Antes, eu evitava lidar com isso.
Mas isso tem consequências grandes.
O fardo de um grande teólogo é muito grande. Eu nunca negarei o valor da teologia, longe disso. Mas que fardo! É por isso que eu disse na sua casa que eu acho oneroso o estudo de coisas universais. Não é para qualquer um. Eu gosto de história pelos mesmos motivos que gosto de arquitetura e urbanismo e estética: são manifestações particulares, breves encarnações particulares de verdades universais e conceitos abstratos.
Na história você lida com pessoas. O Collingwood é muito genial quando fala daquela empatia histórica - no estudo da história, você tem que objetivar um vínculo existencial com o seu objeto, pois ele é uma pessoa particular, assim como você é.
Tem um livro do Modris Eksteins que ele faz isso magistralmente, não é o “Rites of Spring”, chama "Walking since daybreak", ele conta a história da II Guerra em uma mistura com a história pessoal dele de sobrevivente da guerra. É genial, bonito, lindo, eu babei e chorei lendo.
OBS: eu não tenho muita certeza de tudo o que eu disse.
Pedro: É, eu cheguei também a essa conclusão recentemente. Há muitos cristianismos, todos datados historicamente, mas ele também é uma verdade universal que precisa ser zelada. Eu também não tenho certeza do que estou dizendo, mas eu penso que as verdades doutrinárias podem, ênfase na condicional, ser um fator de maior santidade. É possível pessoas mais pias e santas que hoje em outro contexto, mas quando as verdades universais são corretamente apresentadas, a possibilidade da santidade pode ser maior. Não só dá santidade, da própria experiência com Deus. Por falta de termo melhor.
Bruno: Entendi. E o que você tem pensado com relação à tradição? Te bateu uma dúvida?Eu acho esse assunto um dos mais difíceis.
Pedro: Cara, eu não estou bem resolvido com isso. Quer dizer, não sei como responder a esse problema. Parece-me incoerente adotar uma postura conservadora e rejeitar 1500 anos de tradição cristã. Parece-me que a única saída é aceitar que a reforma foi uma revolução em alguma medida. É muito estranho pensar que depois da morte de João a coisa se degringolou de maneira tão absurda, em tão pouco tempo. Será que todos eles, em menos de uma geração, abandonaram a maior parte das verdades teológicas?
Mas tem cada coisa estranha no catolicismo que eu acho que acabaria me tornando um reformador eu acho, então é melhor ficar por aqui mesmo...
Mas eu não lido muito bem com o aspecto e as consequências revolucionárias do protestantismo. O que ameniza, eu acho, é o fato de que não se trata de uma revolução racionalista, na qual a razão e a imaginação humanas são o critério da reconstrução, e de que sim, de fato alguma verdades reivindicadas pela reforma já haviam sido expressas antes na tradição. Mas é preciso concluir que há uma medida grande de releitura do texto bíblico pautado pela subjetividade dos reformadores (iluminada, cremos nós). É por isso que eles citam tanto a bíblia, e muito pouco a tradição.
“The Protestant’s Dilemma If Protestantism is true, all are fallible. So the Protestant must rely on his own judgment above that of his church. And the orthodoxy of the church itself is judged against his interpretation of the Bible. Thus is becomes impossible to distinguish between what divine revelation actually is versus what a fallible human being thinks it is. This fact makes the Catholic Church, philosophically speaking, preferable to Protestantism, since God’s truth can be known—and known with certainty”. Quando eu leio um negócio desse, a minha única saída é dizer que há algo de objetivo e objetivamente acessível nas escrituras, e que pode ser racionalmente apreendido por mentes regeneradas. Se não, de fato eles têm razão.
E olha, eu pensei agora em uma coisa. Nós nos vemos em desvantagem em relação ao catolicismo porque só temos a visão do passado. Mas quem garante que o protestantismo não vai "outlive" o catolicismo, e num montante de centenas de anos? A vantagem, então, passaria para os reformados. Sem a visão do futuro, e tendo em mãos duas tradições que sobreviveram ao tempo e que edificaram vidas verdadeiramente ao longo de séculos, o tempo deixa de ser um argumento. Eu acho que a parada tem que ser resolvida na hermenêutica e na exegese mesmo, cara...e precisa haver uma objetividade nisso, senão cairemos sempre é um conflito de pressupostos e subjetividade que nunca se resolve, e, nesse caso, de fato a solução católica da tradição é bem melhor. A única saída protestante ao catolicismo é defender a objetividade da interpretação bíblica aliada à confirmação secular de uma tradição pujante.
Um exemplo disso é o culto, cara. Pensa no que é uma missa em toda sua complexidade, não teológica, mas prática mesmo. Agora pensa nas reuniões domésticas do cristianismo primitivo. É evidente que há uma diferença objetivamente irrefutável.
Bruno: Sim. Sobre o argumento do católico de que resta ao protestante "interpretar por si próprio", enquanto na igreja católica não existe isso, é um argumento circular. Todo mundo lê a fé segundo alguma tradição, isso é inevitável. A questão é quem tem autoridade para isso - se o indivíduo, ou o bispo. Como você prova logicamente que a tradição católica é a tradição correta, passada dos apóstolos? Cara, a única resposta lógica, é "porque essa é a tradição que a Igreja ensina". Você precisa aceitar ANTES a infalibilidade da tradição católica. Percebe? A única maneira de logicamente provar que a tradição católica é correta é porque ela é a tradição católica. Esse problema do argumento circular é enfrentando por TODA pessoa que reivindica alguma autoridade interpretativa. É verdade que os protestantes tem um problema, mas toda pessoa tem. A Igreja interpreta sua própria tradição continuamente.
Quase ninguém lida com essa questão lógica. A maioria das conversões do protestantismo se dão por desgosto com a bagunça protestante, apreço pela intelectualidade ou pela estética romana, e assim por diante. Mas como provar, de fato, que a tradição católica é correta é sempre um passo de fé, assim como você tem fé na sua interpretação pessoal – que, convenhamos, não é pessoal. “Interpretação pessoal” é um mito, toda interpretação é coletiva.
Eu concordo com você sobre a hermenêutica sólida.
Eu não entendi porque a solução católica é melhor se você considerar a subjetividade e os pressupostos. Por quê? Por que a tradição seria indiferente a esse problema? Como isso seria explicado logicamente - o fato de que a tradição é uma certeza sobre o ensino verdadeiro de Cristo?
Pedro: mas cara, para os católicos a sua tradição remonta após apóstolos e a Cristo, esse é o terreno sólido deles. Eles entendem a tradição como aquela que preserva os ensinamentos corretos porque durante 1500 anos ela se manteve estável. A tradição protestante não tem esse respaldo direto dos apóstolos.
Por isso ela seria mais confiável se formos simplesmente considerar as tradições.
E por isso não é um argumento circular para eles. Eles consideram que a tradição é historicamente ligada a Cristo, não é só uma questão de pressupostos
E o problema que ele aponta no texto é que os reformadores não leram conforme uma tradição, porque a tradição não suporta suas idéias. Eles leram conforme eles mesmos. Eles tinham pressupostos, mas n não tradição que os respaldasse
Bruno: Mas você vê a circularidade de argumentar em favor de uma tradição, dizendo que ela preserva os ensinamentos corretos de Cristo, utilizando como prova do argumento a própria tradição?
Não tem como provar que a tradição católica tem "respaldo direto dos apóstolos" sem diz que isso é verdade simplesmente porque essa é a tradição. É obviamente circular.
A questão não é se para os católicos tem respaldo direto ou não. Eles podem afirmar isso, os ortodoxos afirmam também isso, e a tradição deles é diferente. A questão é se isso é verdadeiro, se isso é verificável. E não é.
Pedro: Mas veja, se existem provas de que desde o ano 100 todos os teólogos defenderam idéias católicas, o mais racional é concluir que essas ideias foram transmitidas diretamente pelos apóstolos, do contrário ao menos alguns no período defenderiam idéias distintas. Isso já não é circular, é racional.
Bruno: Não sei se fui claro... você disse que por causa do respaldo de ligação direta com os apóstolos ela "seria mais confiável", porém isso não se dá apenas como afirmação, só seria confiável se fosse algo que o católico conseguisse provar. Ele não consegue, assim como o ortodoxo não consegue. Nem a tradição reformada, nem a católica, nem a ortodoxa estão nos pais da Igreja. Elas são diferentes, pois todas elas evoluíram.
De fato, se provado que os teólogos pais da Igreja tinham as ideias católicas, não seria circular.
Pedro: Então, mas me parece um pouco evidente isso. Desde o início existem idéias como regeneração batismal, por exemplo.
Bruno: Consensuais? Que elas existiam, eu não tenho dúvidas. Assim como existiam várias outras, que sumiram na história.
Pedro: Então, só estudando pra saber, mas eu não duvido que sejam consensuais.
Embora a austral do batismo infantil, por exemplo, seja controversa desde cedo. Mas acho que só no século 3 há documentos suficientes pra falar do tema.
Na verdade há muito pouca coisa nesses 100 anos do segundo século eu acho...
Pedro: Cara, leia isso aqui depois. Ore antes. Se quiser podemos conversar a respeito depois, dá muito pano pra manga. http://www.chnetwork.org/story/a-protestant-historian-discovers-the-catholic-church-conversion-story-of-a-david-anders-ph-d/
Bruno: Hmmm... de fato. Há várias coisas aí bacanas para discutir. Quando eu cambaleei de lado [católico], foi por causa de argumentos como esses aí (tirando o dos pais da igreja). É claro que não conheço o cara pessoalmente, mas dificilmente alguém se converte ao catolicismo por causa dos pais da Igreja - há incontáveis estudos apontando para todos os lados - e tirando, é claro, o movimento mais comum: caras se convertendo para a Igreja Ortodoxa!
Vamos conversar pessoalmente, sim, é legal. Agora, eu li muitas histórias de conversões nos últimos anos, e poucas mencionam o que realmente me fez ficar balançado: a questão do "gnosticismo protestante". Felizmente, eu hoje conclui que o gnosticismo protestante é um perigo real, mas - pelo menos, segundo o que vejo até agora - não faz parte da essência do protestantismo. É só uma confusão, embora muito comum.
Eu "sanei" o medo do gnosticismo protestante estudando os sacramentos, por isso que, aquele dia em que conversamos sobre isso com meu tio Marcos eu bati tanto nessa tecla da Ceia do Senhor, e nós apresentamos uns argumentos para você sobre isso, puxando a ideia de comunicação real de graça espiritual na ministração.
Os "gnósticos" protestantes veem a Ceia apenas como uma afirmação pública de fé, e um momento de "memória" da verdade do evangelho. Ou seja, o sacramento é restrito ao aspecto cognitivo, mental. Na realidade, toda a religião do "gnosticismo protestante" é restrita ao âmbito cognitivo e mental, e é por isso que é racionalista, e, no limite, mata a crença num mundo espiritual verdadeiro.
Foi pensando nisso que eu também adotei uma posição muito mais aberta aos pentecostais e ao evangelicalismo (eu sempre disse isso e você sabe, que o evangelicalismo é a forma moderna da igreja protestante, nunca neguei, mesmo reconhecendo os problemas e perigos). Eu defendo muito dentro da IPB que a nossa igreja deve ser de confissão reformada e prática evangélica. Essa simbiose é a única maneira de garantir a saúde da Igreja e afastar o perigo do gnosticismo.
Há figurões dentro da IPB que defendem, por exemplo, que não se deve colocar uma cruz de madeira no templo, pois ela leva a "distração" do fiel e o faz crer na salvação por um objeto. Isso é gnosticismo puro, meu Deus! Para esse pessoal, a religião não pode assumir nenhuma forma material, nenhuma prática, nenhum símbolo, se não ela se contamina. É por isso que, para eles, a Ceia do Senhor é um mero ato de cognição, e se de alguma forma a realidade espiritual se torna associada ao material, ela está "suja".
Eu os chamo de "pessoal do culto racional". O argumento usado por essa turma é sempre "nosso culto é um culto racional..." e aí vai. São os caras que defendem igrejas sem aparência, sem forma, completamente práticas. Não os incomoda se o culto se transformar numa conferência de hotel, a pregração se transformar em aula, a Igreja se transformar num bloco de concreto modernista. A forma não tem significado nenhum para eles – tudo deve servir à compreensão cognitiva da mensagem.
Não se incomodam, por exemplo, da Ceia não usar vinho.
É esse tipo de visão que faz o protestante ficar do jeito que o cara falou no artigo autobibliográfico: argumentativo, orgulhoso e confiante. Tudo se transforma em teologia, tudo é dogma, afirmação sistemática. Conforme eu sentia isso, eu me senti muito tentado com o catolicismo (também por causa das leituras do conservadorismo, que é muito romântico, e eu me sensibiliza com a estética católica que eu encontrava na vida dos meus avós, por exemplo)
Mas eu tomei consciência de que isso, que me deixava meio bolado, não é protestantismo. É um perigo do protestantismo, é dele se tornar racionalista, mas não é necessário. A força do protestantismo é justamente a espiritualidade - mas ela não pode morrer.
Como você deve sentir no ar, depois de tudo o que escrevi, tudo isso tem a ver com meu interesse em arquitetura, urbanismo, arte, beleza, etc. Eu acredito que as ideias podem assumir formas, e que nós, seres humanos, somos feitos para nos relacionar (especialmente nossas almas) com formas também. Eu acredito que você pode materializar formalmente a ideia de aconchego, por exemplo (casa do Hobbit). Por isso, eu digo que isso é objetivo, e não subjetivo. O modernismo mata o aconchego, mas as casas do hobbit os preservam. Não é apenas uma opção subjetiva.
Para esses caras do "culto racional", os hinos, por exemplo, servem apenas em sua função de ensinar as verdades do evangelho de uma forma alternativa à pregação. Mais uma vez, é apenas cognitivo.
Esse é um dos motivos pelos quais os hinos não conseguem fazer frente ao avanço dos cânticos bregas. Ninguém consegue explorar bem a estética dos hinos.
Pedro: Cara, seus comentários foram na mosca, muito bons mesmo. Só alguém que ligou com isso pode ter essa clareza. E eu acho que é bem por aí. Desde aquela nossa conversa eu comecei, pela primeira vez, a estudar e entender o que é a tradição reformada. E minha prática diária na igreja tem sido vazia, porque ela é profundamente racionalista. Mas ainda assim, o que mais me pega hoje é a questão da tradição. Como a gente liga com a reforma, que foi em partes um movimento revolucionário? Deflagrou guerras, instabilidade, etc. E eu acredito que a leitura dos reformadores é bastante seletiva dos padres da igreja, não acho que podemos dizer que os padres eram proto-protestantes.
Bruno: Eu me identifico com você nessa questão da prática racionalista. Cara, eu tenho uma resposta vaga para isso, eu não sei dizer exatamente. Eu encontrei uma resposta conservadora e romântica, rs... Como não poderia deixar de ser.
Eu acho que essa retórica reformada de "recuperação do verdadeiro evangelho dos primeiros séculos" é bobagem. Quem dizia isso era justamente os grupos revolucionários, que deram nas seitas, isso fica muito claro no livro “Theology in America”. A Reforma corrigiu erros católicos, mas ela era, claramente, uma etapa nova da religião cristã. Eu acho que a religião cristã evolui em etapas. Não é possível resgatar os pais da Igreja, na realidade, quando você vai lê-los (eu nunca os li, apenas li quem leu), você vê de tudo, misticismo, platonismo, filosofias gregas, maior bagunça.
Eu acho que, falando da perspectiva humana, não existe um "evangelho puro" que seja possível descobrir, e limpá-lo das amarras do tempo, da cultura, do local histórico em que isso se dá. É por isso que eu sou positivo na minha leitura do evangelicalismo.
O evangelicalismo carrega em si mesmo uma profunda ironia: eu lembro de argumentar com você que o perigo dele é o individualismo, o fiel que se pensa autossuficiente, e capaz de arbitrar todo os pontos da fé segundo seu próprio crivo crítico. Mas é justamente porque o evangelicalismo é a forma moderna da religião protestante que ele tem esse perigo – é por causa da modernidade ser individualista. É um perigo inevitável, portanto.
Não é possível simplesmente adotar uma confissão retrógrada, dizer que estamos "vivendo como viviam os reformadores de Westminster", e achar que estamos livres do individualismo porque o individualismo não era um problema na época deles. O individualismo sempre estará conosco. É possível mitigá-lo, e daí a importância da confessionalidade, mas ele sempre estará presente. É essa a ironia: o evangelicalismo é necessário, com suas sinas e com suas sacadas.
Eu acho que a Igreja cristã é um todo orgânico. Não acho que seja possível a teologia se "livrar das influências do pensamento em que ela vive". Isso é uma ambição racionalista. É por isso que os grandes teólogos são sempre meio modernosos, tipo o Karl Barth. Esses caras percebem isso, que uma teologia verdadeira é sempre bagunçada com o tempo em que ela vive. Ela tem perguntas que precisam ser respondidas, e essas perguntas são perguntas da nossa cultura, do espírito da nossa época.
Eu pareço meio liberal-alemão-luterano-existencialista dizendo isso, e eu nunca formulei exatamente o que isso significa, mas é isso que eu percebo por intuição.
Tem muitas perguntas que eu não sei responder, sabe? Mas eu acho que a posição mais saudável e prudente é ser menos belicoso e seguro, e mais aberto, ou mais irênico, mais católico, o que termo que estiver na moda para falar dessa posição protestante que seja mais aberta à história e às outras vertentes cristãs.
Uma coisa que me parece óbvia: muitas das nossas práticas religiosas estão em simbiose com a cultura (isso não é ruim). Por causa disso, não da para baixar da teologia uma série de regras e dogmas sobre coisas práticas. Isso é uma armadilha. Eu não estou falando de relativismo, mas é verdadeiro - isso está mais claro para mim - que várias coisas são bem mais relativas do que eu pensava antes, quando a gente se converteu e estávamos cheios do John Piper e da apologética reformada.
Curiosamente, somente um cara arrogante e orgulhoso (como eu sou) não poderia se dar conta disso. Veja, qualquer um é capaz de saber isso, estava sempre debaixo do nariz. É só você ir em uma igreja bem evangélica, descobrir um "senhorzinho" que trabalha como porteiro de prédio, e ver que ele é mais piedoso e fiel que muitos apologetas de facebook. Resta simplesmente levar essa verdade às suas últimas consequências, só isso. Antes, eu evitava lidar com isso.
Mas isso tem consequências grandes.
O fardo de um grande teólogo é muito grande. Eu nunca negarei o valor da teologia, longe disso. Mas que fardo! É por isso que eu disse na sua casa que eu acho oneroso o estudo de coisas universais. Não é para qualquer um. Eu gosto de história pelos mesmos motivos que gosto de arquitetura e urbanismo e estética: são manifestações particulares, breves encarnações particulares de verdades universais e conceitos abstratos.
Na história você lida com pessoas. O Collingwood é muito genial quando fala daquela empatia histórica - no estudo da história, você tem que objetivar um vínculo existencial com o seu objeto, pois ele é uma pessoa particular, assim como você é.
Tem um livro do Modris Eksteins que ele faz isso magistralmente, não é o “Rites of Spring”, chama "Walking since daybreak", ele conta a história da II Guerra em uma mistura com a história pessoal dele de sobrevivente da guerra. É genial, bonito, lindo, eu babei e chorei lendo.
OBS: eu não tenho muita certeza de tudo o que eu disse.
Pedro: É, eu cheguei também a essa conclusão recentemente. Há muitos cristianismos, todos datados historicamente, mas ele também é uma verdade universal que precisa ser zelada. Eu também não tenho certeza do que estou dizendo, mas eu penso que as verdades doutrinárias podem, ênfase na condicional, ser um fator de maior santidade. É possível pessoas mais pias e santas que hoje em outro contexto, mas quando as verdades universais são corretamente apresentadas, a possibilidade da santidade pode ser maior. Não só dá santidade, da própria experiência com Deus. Por falta de termo melhor.
Bruno: Entendi. E o que você tem pensado com relação à tradição? Te bateu uma dúvida?Eu acho esse assunto um dos mais difíceis.
Pedro: Cara, eu não estou bem resolvido com isso. Quer dizer, não sei como responder a esse problema. Parece-me incoerente adotar uma postura conservadora e rejeitar 1500 anos de tradição cristã. Parece-me que a única saída é aceitar que a reforma foi uma revolução em alguma medida. É muito estranho pensar que depois da morte de João a coisa se degringolou de maneira tão absurda, em tão pouco tempo. Será que todos eles, em menos de uma geração, abandonaram a maior parte das verdades teológicas?
Mas tem cada coisa estranha no catolicismo que eu acho que acabaria me tornando um reformador eu acho, então é melhor ficar por aqui mesmo...
Mas eu não lido muito bem com o aspecto e as consequências revolucionárias do protestantismo. O que ameniza, eu acho, é o fato de que não se trata de uma revolução racionalista, na qual a razão e a imaginação humanas são o critério da reconstrução, e de que sim, de fato alguma verdades reivindicadas pela reforma já haviam sido expressas antes na tradição. Mas é preciso concluir que há uma medida grande de releitura do texto bíblico pautado pela subjetividade dos reformadores (iluminada, cremos nós). É por isso que eles citam tanto a bíblia, e muito pouco a tradição.
“The Protestant’s Dilemma If Protestantism is true, all are fallible. So the Protestant must rely on his own judgment above that of his church. And the orthodoxy of the church itself is judged against his interpretation of the Bible. Thus is becomes impossible to distinguish between what divine revelation actually is versus what a fallible human being thinks it is. This fact makes the Catholic Church, philosophically speaking, preferable to Protestantism, since God’s truth can be known—and known with certainty”. Quando eu leio um negócio desse, a minha única saída é dizer que há algo de objetivo e objetivamente acessível nas escrituras, e que pode ser racionalmente apreendido por mentes regeneradas. Se não, de fato eles têm razão.
E olha, eu pensei agora em uma coisa. Nós nos vemos em desvantagem em relação ao catolicismo porque só temos a visão do passado. Mas quem garante que o protestantismo não vai "outlive" o catolicismo, e num montante de centenas de anos? A vantagem, então, passaria para os reformados. Sem a visão do futuro, e tendo em mãos duas tradições que sobreviveram ao tempo e que edificaram vidas verdadeiramente ao longo de séculos, o tempo deixa de ser um argumento. Eu acho que a parada tem que ser resolvida na hermenêutica e na exegese mesmo, cara...e precisa haver uma objetividade nisso, senão cairemos sempre é um conflito de pressupostos e subjetividade que nunca se resolve, e, nesse caso, de fato a solução católica da tradição é bem melhor. A única saída protestante ao catolicismo é defender a objetividade da interpretação bíblica aliada à confirmação secular de uma tradição pujante.
Um exemplo disso é o culto, cara. Pensa no que é uma missa em toda sua complexidade, não teológica, mas prática mesmo. Agora pensa nas reuniões domésticas do cristianismo primitivo. É evidente que há uma diferença objetivamente irrefutável.
Bruno: Sim. Sobre o argumento do católico de que resta ao protestante "interpretar por si próprio", enquanto na igreja católica não existe isso, é um argumento circular. Todo mundo lê a fé segundo alguma tradição, isso é inevitável. A questão é quem tem autoridade para isso - se o indivíduo, ou o bispo. Como você prova logicamente que a tradição católica é a tradição correta, passada dos apóstolos? Cara, a única resposta lógica, é "porque essa é a tradição que a Igreja ensina". Você precisa aceitar ANTES a infalibilidade da tradição católica. Percebe? A única maneira de logicamente provar que a tradição católica é correta é porque ela é a tradição católica. Esse problema do argumento circular é enfrentando por TODA pessoa que reivindica alguma autoridade interpretativa. É verdade que os protestantes tem um problema, mas toda pessoa tem. A Igreja interpreta sua própria tradição continuamente.
Quase ninguém lida com essa questão lógica. A maioria das conversões do protestantismo se dão por desgosto com a bagunça protestante, apreço pela intelectualidade ou pela estética romana, e assim por diante. Mas como provar, de fato, que a tradição católica é correta é sempre um passo de fé, assim como você tem fé na sua interpretação pessoal – que, convenhamos, não é pessoal. “Interpretação pessoal” é um mito, toda interpretação é coletiva.
Eu concordo com você sobre a hermenêutica sólida.
Eu não entendi porque a solução católica é melhor se você considerar a subjetividade e os pressupostos. Por quê? Por que a tradição seria indiferente a esse problema? Como isso seria explicado logicamente - o fato de que a tradição é uma certeza sobre o ensino verdadeiro de Cristo?
Pedro: mas cara, para os católicos a sua tradição remonta após apóstolos e a Cristo, esse é o terreno sólido deles. Eles entendem a tradição como aquela que preserva os ensinamentos corretos porque durante 1500 anos ela se manteve estável. A tradição protestante não tem esse respaldo direto dos apóstolos.
Por isso ela seria mais confiável se formos simplesmente considerar as tradições.
E por isso não é um argumento circular para eles. Eles consideram que a tradição é historicamente ligada a Cristo, não é só uma questão de pressupostos
E o problema que ele aponta no texto é que os reformadores não leram conforme uma tradição, porque a tradição não suporta suas idéias. Eles leram conforme eles mesmos. Eles tinham pressupostos, mas n não tradição que os respaldasse
Bruno: Mas você vê a circularidade de argumentar em favor de uma tradição, dizendo que ela preserva os ensinamentos corretos de Cristo, utilizando como prova do argumento a própria tradição?
Não tem como provar que a tradição católica tem "respaldo direto dos apóstolos" sem diz que isso é verdade simplesmente porque essa é a tradição. É obviamente circular.
A questão não é se para os católicos tem respaldo direto ou não. Eles podem afirmar isso, os ortodoxos afirmam também isso, e a tradição deles é diferente. A questão é se isso é verdadeiro, se isso é verificável. E não é.
Pedro: Mas veja, se existem provas de que desde o ano 100 todos os teólogos defenderam idéias católicas, o mais racional é concluir que essas ideias foram transmitidas diretamente pelos apóstolos, do contrário ao menos alguns no período defenderiam idéias distintas. Isso já não é circular, é racional.
Bruno: Não sei se fui claro... você disse que por causa do respaldo de ligação direta com os apóstolos ela "seria mais confiável", porém isso não se dá apenas como afirmação, só seria confiável se fosse algo que o católico conseguisse provar. Ele não consegue, assim como o ortodoxo não consegue. Nem a tradição reformada, nem a católica, nem a ortodoxa estão nos pais da Igreja. Elas são diferentes, pois todas elas evoluíram.
De fato, se provado que os teólogos pais da Igreja tinham as ideias católicas, não seria circular.
Pedro: Então, mas me parece um pouco evidente isso. Desde o início existem idéias como regeneração batismal, por exemplo.
Bruno: Consensuais? Que elas existiam, eu não tenho dúvidas. Assim como existiam várias outras, que sumiram na história.
Pedro: Então, só estudando pra saber, mas eu não duvido que sejam consensuais.
Embora a austral do batismo infantil, por exemplo, seja controversa desde cedo. Mas acho que só no século 3 há documentos suficientes pra falar do tema.
Na verdade há muito pouca coisa nesses 100 anos do segundo século eu acho...