terça-feira, 1 de março de 2016

Fragmentos de uma discussão sobre o protestantismo

Discussão minha com meu amigo Pedro sobre questões pertinentes ao protestantismo, com o perigo do gnosticismo, o evangelicalismo e a questão da tradição:

Pedro: Cara, leia isso aqui depois. Ore antes. Se quiser podemos conversar a respeito depois, dá muito pano pra manga. http://www.chnetwork.org/story/a-protestant-historian-discovers-the-catholic-church-conversion-story-of-a-david-anders-ph-d/

Bruno: Hmmm... de fato. Há várias coisas aí bacanas para discutir. Quando eu cambaleei de lado [católico], foi por causa de argumentos como esses aí (tirando o dos pais da igreja). É claro que não conheço o cara pessoalmente, mas dificilmente alguém se converte ao catolicismo por causa dos pais da Igreja - há incontáveis estudos apontando para todos os lados - e tirando, é claro, o movimento mais comum: caras se convertendo para a Igreja Ortodoxa!
Vamos conversar pessoalmente, sim, é legal. Agora, eu li muitas histórias de conversões nos últimos anos, e poucas mencionam o que realmente me fez ficar balançado: a questão do "gnosticismo protestante". Felizmente, eu hoje conclui que o gnosticismo protestante é um perigo real, mas - pelo menos, segundo o que vejo até agora - não faz parte da essência do protestantismo. É só uma confusão, embora muito comum.

Eu "sanei" o medo do gnosticismo protestante estudando os sacramentos, por isso que, aquele dia em que conversamos sobre isso com meu tio Marcos eu bati tanto nessa tecla da Ceia do Senhor, e nós apresentamos uns argumentos para você sobre isso, puxando a ideia de comunicação real de graça espiritual na ministração.

Os "gnósticos" protestantes veem a Ceia apenas como uma afirmação pública de fé, e um momento de "memória" da verdade do evangelho. Ou seja, o sacramento é restrito ao aspecto cognitivo, mental. Na realidade, toda a religião do "gnosticismo protestante" é restrita ao âmbito cognitivo e mental, e é por isso que é racionalista, e, no limite, mata a crença num mundo espiritual verdadeiro.
Foi pensando nisso que eu também adotei uma posição muito mais aberta aos pentecostais e ao evangelicalismo (eu sempre disse isso e você sabe, que o evangelicalismo é a forma moderna da igreja protestante, nunca neguei, mesmo reconhecendo os problemas e perigos). Eu defendo muito dentro da IPB que a nossa igreja deve ser de confissão reformada e prática evangélica. Essa simbiose é a única maneira de garantir a saúde da Igreja e afastar o perigo do gnosticismo.

Há figurões dentro da IPB que defendem, por exemplo, que não se deve colocar uma cruz de madeira no templo, pois ela leva a "distração" do fiel e o faz crer na salvação por um objeto. Isso é gnosticismo puro, meu Deus! Para esse pessoal, a religião não pode assumir nenhuma forma material, nenhuma prática, nenhum símbolo, se não ela se contamina. É por isso que, para eles, a Ceia do Senhor é um mero ato de cognição, e se de alguma forma a realidade espiritual se torna associada ao material, ela está "suja".

Eu os chamo de "pessoal do culto racional". O argumento usado por essa turma é sempre "nosso culto é um culto racional..." e aí vai. São os caras que defendem igrejas sem aparência, sem forma, completamente práticas. Não os incomoda se o culto se transformar numa conferência de hotel, a pregração se transformar em aula, a Igreja se transformar num bloco de concreto modernista. A forma não tem significado nenhum para eles – tudo deve servir à compreensão cognitiva da mensagem.
Não se incomodam, por exemplo, da Ceia não usar vinho.

É esse tipo de visão que faz o protestante ficar do jeito que o cara falou no artigo autobibliográfico: argumentativo, orgulhoso e confiante. Tudo se transforma em teologia, tudo é dogma, afirmação sistemática. Conforme eu sentia isso, eu me senti muito tentado com o catolicismo (também por causa das leituras do conservadorismo, que é muito romântico, e eu me sensibiliza com a estética católica que eu encontrava na vida dos meus avós, por exemplo)

Mas eu tomei consciência de que isso, que me deixava meio bolado, não é protestantismo. É um perigo do protestantismo, é dele se tornar racionalista, mas não é necessário. A força do protestantismo é justamente a espiritualidade - mas ela não pode morrer.

Como você deve sentir no ar, depois de tudo o que escrevi, tudo isso tem a ver com meu interesse em arquitetura, urbanismo, arte, beleza, etc. Eu acredito que as ideias podem assumir formas, e que nós, seres humanos, somos feitos para nos relacionar (especialmente nossas almas) com formas também. Eu acredito que você pode materializar formalmente a ideia de aconchego, por exemplo (casa do Hobbit). Por isso, eu digo que isso é objetivo, e não subjetivo. O modernismo mata o aconchego, mas as casas do hobbit os preservam. Não é apenas uma opção subjetiva.

Para esses caras do "culto racional", os hinos, por exemplo, servem apenas em sua função de ensinar as verdades do evangelho de uma forma alternativa à pregação. Mais uma vez, é apenas cognitivo.
Esse é um dos motivos pelos quais os hinos não conseguem fazer frente ao avanço dos cânticos bregas. Ninguém consegue explorar bem a estética dos hinos.


Pedro: Cara, seus comentários foram na mosca, muito bons mesmo. Só alguém que ligou com isso pode ter essa clareza. E eu acho que é bem por aí. Desde aquela nossa conversa eu comecei, pela primeira vez, a estudar e entender o que é a tradição reformada. E minha prática diária na igreja tem sido vazia, porque ela é profundamente racionalista. Mas ainda assim, o que mais me pega hoje é a questão da tradição. Como a gente liga com a reforma, que foi em partes um movimento revolucionário? Deflagrou guerras, instabilidade, etc. E eu acredito que a leitura dos reformadores é bastante seletiva dos padres da igreja, não acho que podemos dizer que os padres eram proto-protestantes.

Bruno: Eu me identifico com você nessa questão da prática racionalista. Cara, eu tenho uma resposta vaga para isso, eu não sei dizer exatamente. Eu encontrei uma resposta conservadora e romântica, rs... Como não poderia deixar de ser.

Eu acho que essa retórica reformada de "recuperação do verdadeiro evangelho dos primeiros séculos" é bobagem. Quem dizia isso era justamente os grupos revolucionários, que deram nas seitas, isso fica muito claro no livro “Theology in America”. A Reforma corrigiu erros católicos, mas ela era, claramente, uma etapa nova da religião cristã. Eu acho que a religião cristã evolui em etapas. Não é possível resgatar os pais da Igreja, na realidade, quando você vai lê-los (eu nunca os li, apenas li quem leu), você vê de tudo, misticismo, platonismo, filosofias gregas, maior bagunça.
Eu acho que, falando da perspectiva humana, não existe um "evangelho puro" que seja possível descobrir, e limpá-lo das amarras do tempo, da cultura, do local histórico em que isso se dá. É por isso que eu sou positivo na minha leitura do evangelicalismo.

O evangelicalismo carrega em si mesmo uma profunda ironia: eu lembro de argumentar com você que o perigo dele é o individualismo, o fiel que se pensa autossuficiente, e capaz de arbitrar todo os pontos da fé segundo seu próprio crivo crítico. Mas é justamente porque o evangelicalismo é a forma moderna da religião protestante que ele tem esse perigo – é por causa da modernidade ser individualista. É um perigo inevitável, portanto.

Não é possível simplesmente adotar uma confissão retrógrada, dizer que estamos "vivendo como viviam os reformadores de Westminster", e achar que estamos livres do individualismo porque o individualismo não era um problema na época deles. O individualismo sempre estará conosco. É possível mitigá-lo, e daí a importância da confessionalidade, mas ele sempre estará presente. É essa a ironia: o evangelicalismo é necessário, com suas sinas e com suas sacadas.

Eu acho que a Igreja cristã é um todo orgânico. Não acho que seja possível a teologia se "livrar das influências do pensamento em que ela vive". Isso é uma ambição racionalista. É por isso que os grandes teólogos são sempre meio modernosos, tipo o Karl Barth. Esses caras percebem isso, que uma teologia verdadeira é sempre bagunçada com o tempo em que ela vive. Ela tem perguntas que precisam ser respondidas, e essas perguntas são perguntas da nossa cultura, do espírito da nossa época.

Eu pareço meio liberal-alemão-luterano-existencialista dizendo isso, e eu nunca formulei exatamente o que isso significa, mas é isso que eu percebo por intuição.

Tem muitas perguntas que eu não sei responder, sabe? Mas eu acho que a posição mais saudável e prudente é ser menos belicoso e seguro, e mais aberto, ou mais irênico, mais católico, o que termo que estiver na moda para falar dessa posição protestante que seja mais aberta à história e às outras vertentes cristãs.

Uma coisa que me parece óbvia: muitas das nossas práticas religiosas estão em simbiose com a cultura (isso não é ruim). Por causa disso, não da para baixar da teologia uma série de regras e dogmas sobre coisas práticas. Isso é uma armadilha. Eu não estou falando de relativismo, mas é verdadeiro - isso está mais claro para mim - que várias coisas são bem mais relativas do que eu pensava antes, quando a gente se converteu e estávamos cheios do John Piper e da apologética reformada.

Curiosamente, somente um cara arrogante e orgulhoso (como eu sou) não poderia se dar conta disso. Veja, qualquer um é capaz de saber isso, estava sempre debaixo do nariz. É só você ir em uma igreja bem evangélica, descobrir um "senhorzinho" que trabalha como porteiro de prédio, e ver que ele é mais piedoso e fiel que muitos apologetas de facebook. Resta simplesmente levar essa verdade às suas últimas consequências, só isso. Antes, eu evitava lidar com isso.
Mas isso tem consequências grandes.

O fardo de um grande teólogo é muito grande. Eu nunca negarei o valor da teologia, longe disso. Mas que fardo! É por isso que eu disse na sua casa que eu acho oneroso o estudo de coisas universais. Não é para qualquer um. Eu gosto de história pelos mesmos motivos que gosto de arquitetura e urbanismo e estética: são manifestações particulares, breves encarnações particulares de verdades universais e conceitos abstratos.

Na história você lida com pessoas. O Collingwood é muito genial quando fala daquela empatia histórica - no estudo da história, você tem que objetivar um vínculo existencial com o seu objeto, pois ele é uma pessoa particular, assim como você é.

Tem um livro do Modris Eksteins que ele faz isso magistralmente, não é o “Rites of Spring”, chama "Walking since daybreak", ele conta a história da II Guerra em uma mistura com a história pessoal dele de sobrevivente da guerra. É genial, bonito, lindo, eu babei e chorei lendo.

OBS: eu não tenho muita certeza de tudo o que eu disse.

Pedro: É, eu cheguei também a essa conclusão recentemente. Há muitos cristianismos, todos datados historicamente, mas ele também é uma verdade universal que precisa ser zelada. Eu também não tenho certeza do que estou dizendo, mas eu penso que as verdades doutrinárias podem, ênfase na condicional, ser um fator de maior santidade. É possível pessoas mais pias e santas que hoje em outro contexto, mas quando as verdades universais são corretamente apresentadas, a possibilidade da santidade pode ser maior. Não só dá santidade, da própria experiência com Deus. Por falta de termo melhor.

Bruno: Entendi. E o que você tem pensado com relação à tradição? Te bateu uma dúvida?Eu acho esse assunto um dos mais difíceis.

Pedro: Cara, eu não estou bem resolvido com isso. Quer dizer, não sei como responder a esse problema. Parece-me incoerente adotar uma postura conservadora e rejeitar 1500 anos de tradição cristã. Parece-me que a única saída é aceitar que a reforma foi uma revolução em alguma medida. É muito estranho pensar que depois da morte de João a coisa se degringolou de maneira tão absurda, em tão pouco tempo. Será que todos eles, em menos de uma geração, abandonaram a maior parte das verdades teológicas?

Mas tem cada coisa estranha no catolicismo que eu acho que acabaria me tornando um reformador eu acho, então é melhor ficar por aqui mesmo...

Mas eu não lido muito bem com o aspecto e as consequências revolucionárias do protestantismo. O que ameniza, eu acho, é o fato de que não se trata de uma revolução racionalista, na qual a razão e a imaginação humanas são o critério da reconstrução, e de que sim, de fato alguma verdades reivindicadas pela reforma já haviam sido expressas antes na tradição. Mas é preciso concluir que há uma medida grande de releitura do texto bíblico pautado pela subjetividade dos reformadores (iluminada, cremos nós). É por isso que eles citam tanto a bíblia, e muito pouco a tradição.
“The Protestant’s Dilemma If Protestantism is true, all are fallible. So the Protestant must rely on his own judgment above that of his church. And the orthodoxy of the church itself is judged against his interpretation of the Bible. Thus is becomes impossible to distinguish between what divine revelation actually is versus what a fallible human being thinks it is. This fact makes the Catholic Church, philosophically speaking, preferable to Protestantism, since God’s truth can be known—and known with certainty”. Quando eu leio um negócio desse, a minha única saída é dizer que há algo de objetivo e objetivamente acessível nas escrituras, e que pode ser racionalmente apreendido por mentes regeneradas. Se não, de fato eles têm razão.

E olha, eu pensei agora em uma coisa. Nós nos vemos em desvantagem em relação ao catolicismo porque só temos a visão do passado. Mas quem garante que o protestantismo não vai "outlive" o catolicismo, e num montante de centenas de anos? A vantagem, então, passaria para os reformados. Sem a visão do futuro, e tendo em mãos duas tradições que sobreviveram ao tempo e que edificaram vidas verdadeiramente ao longo de séculos, o tempo deixa de ser um argumento. Eu acho que a parada tem que ser resolvida na hermenêutica e na exegese mesmo, cara...e precisa haver uma objetividade nisso, senão cairemos sempre é um conflito de pressupostos e subjetividade que nunca se resolve, e, nesse caso, de fato a solução católica da tradição é bem melhor. A única saída protestante ao catolicismo é defender a objetividade da interpretação bíblica aliada à confirmação secular de uma tradição pujante.

Um exemplo disso é o culto, cara. Pensa no que é uma missa em toda sua complexidade, não teológica, mas prática mesmo. Agora pensa nas reuniões domésticas do cristianismo primitivo. É evidente que há uma diferença objetivamente irrefutável.

Bruno: Sim. Sobre o argumento do católico de que resta ao protestante "interpretar por si próprio", enquanto na igreja católica não existe isso, é um argumento circular. Todo mundo lê a fé segundo alguma tradição, isso é inevitável. A questão é quem tem autoridade para isso - se o indivíduo, ou o bispo. Como você prova logicamente que a tradição católica é a tradição correta, passada dos apóstolos? Cara, a única resposta lógica, é "porque essa é a tradição que a Igreja ensina". Você precisa aceitar ANTES a infalibilidade da tradição católica. Percebe? A única maneira de logicamente provar que a tradição católica é correta é porque ela é a tradição católica. Esse problema do argumento circular é enfrentando por TODA pessoa que reivindica alguma autoridade interpretativa. É verdade que os protestantes tem um problema, mas toda pessoa tem. A Igreja interpreta sua própria tradição continuamente.

Quase ninguém lida com essa questão lógica. A maioria das conversões do protestantismo se dão por desgosto com a bagunça protestante, apreço pela intelectualidade ou pela estética romana, e assim por diante. Mas como provar, de fato, que a tradição católica é correta é sempre um passo de fé, assim como você tem fé na sua interpretação pessoal – que, convenhamos, não é pessoal. “Interpretação pessoal” é um mito, toda interpretação é coletiva.

Eu concordo com você sobre a hermenêutica sólida.

Eu não entendi porque a solução católica é melhor se você considerar a subjetividade e os pressupostos. Por quê? Por que a tradição seria indiferente a esse problema? Como isso seria explicado logicamente - o fato de que a tradição é uma certeza sobre o ensino verdadeiro de Cristo?

Pedro: mas cara, para os católicos a sua tradição remonta após apóstolos e a Cristo, esse é o terreno sólido deles. Eles entendem a tradição como aquela que preserva os ensinamentos corretos porque durante 1500 anos ela se manteve estável. A tradição protestante não tem esse respaldo direto dos apóstolos.

Por isso ela seria mais confiável se formos simplesmente considerar as tradições.

E por isso não é um argumento circular para eles. Eles consideram que a tradição é historicamente ligada a Cristo, não é só uma questão de pressupostos

E o problema que ele aponta no texto é que os reformadores não leram conforme uma tradição, porque a tradição não suporta suas idéias. Eles leram conforme eles mesmos. Eles tinham pressupostos, mas n não tradição que os respaldasse

Bruno: Mas você vê a circularidade de argumentar em favor de uma tradição, dizendo que ela preserva os ensinamentos corretos de Cristo, utilizando como prova do argumento a própria tradição?
Não tem como provar que a tradição católica tem "respaldo direto dos apóstolos" sem diz que isso é verdade simplesmente porque essa é a tradição. É obviamente circular.

A questão não é se para os católicos tem respaldo direto ou não. Eles podem afirmar isso, os ortodoxos afirmam também isso, e a tradição deles é diferente. A questão é se isso é verdadeiro, se isso é verificável. E não é.

Pedro: Mas veja, se existem provas de que desde o ano 100 todos os teólogos defenderam idéias católicas, o mais racional é concluir que essas ideias foram transmitidas diretamente pelos apóstolos, do contrário ao menos alguns no período defenderiam idéias distintas. Isso já não é circular, é racional.

Bruno: Não sei se fui claro... você disse que por causa do respaldo de ligação direta com os apóstolos ela "seria mais confiável", porém isso não se dá apenas como afirmação, só seria confiável se fosse algo que o católico conseguisse provar. Ele não consegue, assim como o ortodoxo não consegue. Nem a tradição reformada, nem a católica, nem a ortodoxa estão nos pais da Igreja. Elas são diferentes, pois todas elas evoluíram.
De fato, se provado que os teólogos pais da Igreja tinham as ideias católicas, não seria circular.

Pedro: Então, mas me parece um pouco evidente isso. Desde o início existem idéias como regeneração batismal, por exemplo.

Bruno: Consensuais? Que elas existiam, eu não tenho dúvidas. Assim como existiam várias outras, que sumiram na história.

Pedro: Então, só estudando pra saber, mas eu não duvido que sejam consensuais.
Embora a austral do batismo infantil, por exemplo, seja controversa desde cedo. Mas acho que só no século 3 há documentos suficientes pra falar do tema.
Na verdade há muito pouca coisa nesses 100 anos do segundo século eu acho...

terça-feira, 31 de março de 2015

Fiorismo, utopia e a contingência da realidade

Um dos pais da crença de que é possível realizar uma utopia na terra é o abade cisterciense Joaquim de Fiore (1132 - 1202).

Sua visão de história é uma panaceia trinitária para os males do mundo. Ele acredita que a Trindade se manifesta historicamente, em três eras de 42 gerações cada. A evolução secular da história, a história da redenção e a natureza trinitária de Deus eram, para Fiore, uma coisa só, um mesmo processo. Como cada Era é um período histórico, elas possuem instituições e cultura própria, além de uma tipologia, precursores e visionários. Fiore historicizou a Trindade, assim como Hegel, séculos depois, historicizaria o Espírito.

A primeira dessas Eras, a ordo conjugatorum, é a Era do Pai, que se estende de Adão até o nascimento de Cristo.  A Era do Pai foi o tempo do patriarcalismo e da lei. A Era do Filho, estendendo-se do nascimento deste ao século XIII, perpassa o período da Igreja cristã até a época de Fiore, e foi o tempo do clericarismo, a ordo clericorum, da autoridade fragmentada (Lei, Rei, Papa, Feudos, monges etc) e do início da graça.

A era do Espírito Santo, segundo o abade, deveria começar por volta de sua própria época (coincidência?), ao redor do ano 1250. É a ordo monachorum. Esse seria o período da graça superabundante, quando os valores monásticos se espalhariam por toda a sociedade. Seria um tempo em que o amor reinaria supremamente, tudo haveria de ser comunitário e compartilhado. A autoridade seria dissolvida no igualitarismo de comunidades compostas não por lordes e servos, mas por amigos, que se veriam como iguais. Assim, a manifestação histórica da Trindade se daria como uma lenta evolução, um progresso gradual de realização do reino espiritual de Deus na terra.

Há muita coisa interessante sobre Joaquim de Fiori relatadas no livro de Steven Ozment. O mais interessante de tudo, entretanto, está nisso aqui (pg 107):

"By such reasoning Joachim's prophecy of a new age sanctioned innovation against tradition and implied that authority need not be based on precedent. More so than Ockhamist philosophy, Joachim's profecy stressed to contemporaries the contingency of the world as presently known. It did this, however, not by pointing to an infinite number of possibilities open to God in eternity, but by directing poeple to a new, superior form of life still in the future. For Joachim, each age bore its own peculiar divine authorization. As the past had its unique standards and practices, so too would be the future. As the standards of the Age of the of the Father ("an eye for an eye, a tooth for a tooth") gave way to those of the Age of the Son ("turn the other cheek"), so must those of the Age of the Son give way to those of the dawning age - the egalitarian, communal life of mutual love." (grifo meu)

Em todos meus colegas idealistas, progressistas ou revolucionários, percebo exatamente esse traço: a contingência da realidade presente. O peso dos séculos é descartável, como é a mão que se troca no começo infeliz de um jogo de cartas. A experiência humana coletiva, acumulada ao longo de gerações incontáveis, e imortalizada em símbolos tradicionais, na alta cultura e na solidez de instituições milenares - como a própria Igreja e o direito - é vista não como uma fundamentação imperiosa para ações futuras, mas como um tiro, uma tentativa, um chute que pode não ter dado tão certo e que precisa de novo rumo. Os homens antigos não pesam. O caminho percorrido pela humanidade para que o mundo tenha chegado até aqui não se impõe autoritativamente, e a experiência humana é transmutada num jogo de acerto e erro. É como se o mundo se tornasse plástico, maleável, acidental. Há na mentalidade do progresso um desprendimento do peso da realidade - e não à toa uma das imagens mais evocantes do utopismo é o homem que imagina uma cidade ideal flutuante.


Parece que isso foi trabalhado por Eric Voegelin como uma perturbação do espírito (gnosticismo). Não conheço a descrição exatamente. Mas a relação vista aqui entre o nominalismo e o pensamento utópico deve ser uma sacada memorável para o estudo das teorias de progresso e da mentalidade revolucionária.


quinta-feira, 5 de março de 2015

P.O. Kristeller sobre o historiador e o Renascimento

O parágrafo final do artigo Humanism and Scholasticism in the Italian Renaissance de Paul Oskar Kristeller (publicado em "Renaissance Thought", 1961) é memorável. É mais "quente", claro, para quem o encontra no final da leitura completa do artigo; mas, como toca em aspectos importantes do ofício do historiador, vale a pena registrá-lo mesmo assim.

“Modern scholarship has been far too much influenced by all kinds of prejudices, against the use of Latin, against scholasticism, against the medieval church, and also by the unwarranted effort to read later developments, such as the German Reformation, or French Libertinism, or nineteenth-century liberalism or nationalism, back into the Renaissance. The only way to understand the Renaissance is a direct and, possibly, and objective study of the original sources. We have no real no real justification to take sides in the controversies of the Renaissance, and to play humanism against scholasticism, or scholasticism against humanism, or modern science against both of them. Instead of trying to reduce everything to one or two issues, which is the privilege and curse of political controversy, we should try to develop a kind of historical pluralism. It is easy to praise everything in the past which happens to resemble certain favorite ideas of our own time, or to ridicule and minimize everything that disagrees with them. This method is neither fair nor helpful for an adequate understanding of the past. It is equally easy to indulge in a sort of worship of success, and to dismiss defeated and refuted ideas with a shrugging of the shoulders, but just as in political history, this method does justice neither to the vanquished nor the victors. Instead of blaming each century for not having anticipated the achievements of the next, intellectual history must patiently register the errors of the past as well as its truths. Complete objectivity may be impossible to achieve, but it should remain the permanent aim and standard of the historian as well as of the philosopher and scientists.”

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Universais de Tillich...

O que é o nominalismo? Em Filosofia, é a negação da existência de universais. Um universal é uma entidade metafísica que garante às coisas suas respectivas essências, ou qualidades de Ser. Eles podem existir num além-mundo, idealmente, como em Platão, ou podem existir dentro de cada particular, como em Aristóteles. O que importa é que nessas duas filosofias (chamadas realistas) os universais possuem existência ontológica. 

Pensando assim, quando você vê uma cadeira com o pé quebrado, você ainda a chama “cadeira” – mesmo sem o pé – pois reconhece que ela ainda é uma cadeira, ou compartilha a qualidade de “Ser” cadeira. Isso não é uma opinião subjetiva sua (“ah, eu chamo de cadeira porque eu ainda consigo sentar, se não conseguisse...”) mas uma realidade ontológica. Ela compartilha essa qualidade “cadeira” com todas as outras.

Universalia realia. Os universais são realidades, para os medievais. Essas essências metafísicas são potenciais de Ser, e determinam o que as coisas são. Paul Tillich explica: eles não existem no tempo e no espaço. Se fosse assim, isso seria baboseira. Você diria: “ah, eu nunca vi ‘humanidade’, só pessoas individuais, o Bruno e o Pedro. Nunca vi nem toquei na ‘cadeiridade’ ou na ‘arvorirade’, só vi cadeiras e árvores individuais, particulares”. É óbvio que você nunca viu nem tocou num universal. (Tillich, 143) Mas assim como o Bruno e o Pedro e todos os homens têm nariz e boca, o universal é o poder que torna possível todo indivíduo se desenvolver assim. Para que isso seja real, estrutural, garantido, ele precisa existir ontologicamente.

Para o nominalista, os nomes que damos às coisas são meras conveniências, e chamamos “cadeira” vários objetos diferentes porque por acaso eles compartilham semelhanças que interessam a nós no momento. Se nos preocupássemos com outras coisas, daríamos outro nome. Não haveria nada real que os uniria metafisicamente. Seriam apenas particulares, soltos, desconexos.

Paul Tillich dá um exemplo bacaníssimo. Você pode ver uma árvore na esquina da Rua Itacolimi com a Rua Alagoas e dizer “putz, isso pode cair e me machucar”. Você pode ver uma árvore na janela de casa e pensar “Hmmm, essa árvore fica linda aí.”. Você está no terreno dos particulares aqui. Ou você pode ver uma árvore qualquer, e se deslumbrar de como ela cresce segundo uma estrutura típica, como ela espalha suas sementes em certa época do ano, como ela agrega outras plantas em seu tronco, e se fortalece, e transmite vida, e você diz “isso é uma árvore”. Isso é uma posição realista, que procura a essência das coisas.

Not so Fast

Normalmente o nominalismo está para Filosofia assim como a peste negra está para a História. Mas não parece que é necessário pensar assim. Há quem buscou requalificar o pensamento nominalista medieval (cf. Heiko Oberman, historiador luterano) e torna-lo mais palatável.

... a Mário.

Mário Ferreira dos Santos (126, 127) lança um exemplo para explicar os universais e particulares, e adiciona algumas outras escolas intermediárias.

Nesse debate, é possível ser nominalista, conceptualista, realista moderado e realista exagerado. 

O exemplo dado é um do carro Volkswagen. O nome é dado para apontar automóveis de marca Volkswagen. Temos, então, em primeiro lugar, um nome que almeja significação universal. Ele pretende designar um grupo de automóveis. Chame isso de estágio A.

Agora, os automóveis Volkswagen possuem características em comum, que se repetem em todos os seus carros, correto? Pense nas normas técnicas, na mecânica, etc. Então, o termo Volkswagen capta esse conjunto de características presentes em todos os carros Volkswagen (Mário diz "com-capta", capta junto). São qualidades comuns que, na nossa mente (isso é importante) não se pode prescindir, elas definem um Volkswagen. Tudo isso que foi "com-captado", resulta no "cum-ceptum", o conceito. Agora há um conceito universal Volkswagen. Estágio B.

Mas pera aí. Esse conceito tem algum fundamento real? Essas qualidades imprescindíveis de um Volkswagen existem na realidade, definem de verdade o carro, ou isso é uma opção subjetiva que fizemos na nossa mente? Posso dizer que sim, existem mesmo. Posso dizer que esse mínimo denominador comum de elementos é verdadeiramente o que define um Volkswagen, não porque eu quero, mas porque a realidade é essa mesmo, e se você acha que um Gol não é um Volkswagen porque ele é duro e marrento, você está errado, pois ele compartilha verdadeiramente os elementos reais de um Volkswagen, a despeito de ser meio esquisitinho. Estágio C. Cada carro Volkswagen possui em si mesmo os elementos universais que os definem.

Há ainda um último estágio, que (você matou a charada) é o exagerado. Esse conceito universal pode existir além das coisas, além da mente humana, idealmente. Estágio D.

O nominalista afirma apenas o estágio A, o conceptualista o B, o realista moderado, além dessas duas, afirma o C, e o realista exagerado afirma o D.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Uma implicação de necessidade e contingência


Provavelmente, o debate sobre necessidade e contingência exposto no post abaixo tem implicações para as discussões sobre Teodiceia (um termo dado por Leibniz), ou como Deus pode permitir a existência do mal. Seria o mal necessário à própria estrutura da realidade, ou uma opção voluntária de Deus de permitir que ele exista, almejando o melhor dos mundos possíveis, ou até apenas um dos mundos possíveis que satisfez sua vontade contingencialmente?

Séculos antes Anselmo buscou provar racionalmente, sem o auxílio da revelação divina, que a incarnação é uma necessidade para a salvação do homem (Cur Deus homo, porque Deus se tornou homem). Consegue-se isso (bem mais ou menos) com um argumento semelhante ao de Leibniz: propondo-se que só há uma maneira de fazer as coisas da melhor forma possível, que é como Deus fez. Assim, se essa foi a forma escolhida por um Deus justo e bom, essa é a única forma válida. É a melhor possível.

William Courtenay (Ozment, 50) diz que Anselmo se afasta do nominalismo, pois não lhe agrada divisões sobre potentia absoluta e ordinata. De fato, se Anselmo pressupõe que a maneira escolhida por Deus é a melhor possível porque escolhida por Ele, não parece haver espaço para outras. É como se a natureza de Deus determinasse suas escolhas.




Predestinação na Escolástica Tardia

Para os crentes protestantes, a ideia da predestinação aparece deslocada de seu contexto filosófico e histórico. Parece que ela surgiu ex nihilo na mente de Lutero e Calvino, como se tivesse saltado sozinha das cartas de Paulo e pousado na mente dos reformadores. Já entre católicos, é como se o mundo medieval nunca houvesse escutado nada igual, e estivesse boquiaberto perante tão “horrível” e “surpreendente” doutrina quando da pena de Lutero ela saiu, contra Erasmo.

John Duns Scotus (1265-1308) havia distinguido entre a vontade absoluta de Deus, ou seu poder absoluto, e os meios contingenciais (ou ordenados) por meio dos quais ele executa sua vontade. Essa distinção é fundamental na teologia. Sobre Scotus diz Steven Ozment (Age of Reform, 34):

“[to Scotus] The former was primary and crucial. Necessary divine relations existed only within the Godhead, there, in eternity, where Father, Son, and Holy Spirit, taking counsel with themselves, decided to create and save a portion of mankind. In eternity God had determined within himself everything that would be, including who would and would not be saved; having so determined, he then, freely and wisely, but also secondarily, elected angels and agents to execute is will in time […] The choice of particular means to execute the divine will had nothing to do with any intrinsic value they possessed, and their importance continued to lie only in their having being chosen by God”

A discussão subjacente é: se Deus é limitado pelo caráter da própria realidade, ou se ela é contingencial, objeto apenas da vontade particular e inescrutável de Deus. A realidade é necessária ou contingencial? Quanto mais necessária é a realidade, mais inteligível ela é (daí a acusação – questionável – de racionalismo em Aquino). Quanto mais contingencial, mais oriunda da vontade ininteligível de Deus ela é. Quanto mais necessária, mais amarrada na estrutura da realidade é a agência de Deus, e mais semelhante a Ele o homem (dotado de razão, a qual ele compartilha com Deus) se torna. Quanto mais contingencial, mais afastado e incompreensível Ele é.

Os Dez Mandamentos são necessários ou contingenciais? São objetos da vontade arbitrária de Deus, ou estão amarrados na própria estrutura da realidade? Em outras palavras: Deus poderia ter escolhido outros mandamentos, ou só esses?

Para Aquino, a forma substancial do homem é razão, e a graça infundida nele é acidental. Mas Deus salva pela graça, então, da onde ela vem? Pedro Lombardo (ele deve ter aberto o caminho do voluntarismo), disse que a graça não era um aspecto acidental do homem, mas a própria presença do Espírito Santo nele. Aquino nega isso, e diz: a graça é realmente pertencente ao homem, acidentalmente (não define sua essência), mas infundida nele, ou seja, as atitudes oriundas dela são verdadeiramente atos voluntários de posse do homem. Deus, então, torna-se “obrigado” a salvar onde há essa graça, pois essa é a própria estrutura da realidade. Ademais, a graça de Deus poderia ser mediada pelos sacramentos, pois ela estava presente verdadeiramente neles. Assim, o homem poderia adquirir os hábitos da graça pela participação nos sacramentos. Os sacramentos operariam uma mudança ontológica no recipiente, mesmo se acidental.

A ideia de Scotus é preservar a liberdade de Deus – somente Ele é necessário em si mesmo, sua relação trinitária é necessária, mas não sua ação na história – e ressaltar seu caráter de Criador, majestoso. Por que isso foi necessário? Pois o realismo tomista havia “amarrado” a vontade de Deus à própria estrutura da realidade, totalmente inteligível na Escala do Ser (Chain of Beign) e da graça sacramental (isso é o que diz Ozment).

O axioma de Scotus é: "Nada criado deve, por razões intrínsecas a ele, ser aceito por Deus". Guilherme de Ockham em seguida, postula: "O que quer que Deus possa produzir por meio de causas secundárias, ele pode diretamente produzir e preservar sem elas" (daí surgiram as famosas colocações de Ockham de que Jesus poderia ter se encarnado num burro ou numa pedra).

Por outro lado, a formulação de predestinação mais parecida com a dos reformadores vem de Gregório de Rhimini.